sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Saramago e a crônica


O livro A Bagagem do Viajante, de José Saramago, confirma a tese de que mesmo um genêro como a crônica, literariamente "insosso" e "mimeticamente urbano" (opinião particular em relação às crônicas contemporâneas em língua portuguesa), pode alçar-se à arte literária, basta que haja um grande escritor erigindo este arcabouço linguístico. Eis um excerto do livro:




"Almocei na fronteira do ar livre, rente a uma janela aberta. Era já o meio da tarde, e o restaurante estava deserto: o sol prendera-me na praia, envolvera-me de torpor, e entre o banho e a areia se tinham escoado as horas. É uma sensação agradável esta de ter o corpo um pouco áspero de sal, a antegozar o duche que nos espera em casa. E enquanto a costeleta de vitela não vem, vai-se beberricando o vinho fresco e estendendo a manteiga em bocadinhos de pão torrado, para enganar a fome subitamente acordada. Vida boa.


O momento é tão perfeito que podemos falar de coisas importantes sem que as vozes tenham de subir, e nenhum de nós pensa em ganhar no diálogo e ter mais razão do que a pode ter um comum ser humano que respeite a verdade. Além disso, é verão e, como eu disse, estamos na fronteira do ar livre. A aragem faz estremecer umas plantas cheirosas a que podemos chegar com os dedos e em volta das quais zumbem os insectos do tempo. Quebrada pela folhagem, há uma réstia de sol que se derrama pelas madeiras envernizadas da janela. Vida boa.


Temos a pele doirada e sorrimos muito. No interior do restaurante levanta-se uma grande labareda: é a cozinha que oferece os seus mistérios. Logo a seguir o empregado traz a costeleta, rescendente no seu molho natural, e nós infringimos as mais comezinhas regras da gastronomia mandando adiantar-se mais vinho branco. E ela vem, a garrafa, com a sua transpiração gelada e o truque mágico de embaciar os copos que a recebem. Ah, vida boa, vida boa.


Estamos agora calados, absorvidos na delicada operação de separar a carne do osso. Sob o gume da faca as fibras macias separam-se sem custo. O molho penetra nelas, aviva-lhes o sabor-oh, que bom é comer assim, depois de um ardente dia de praia, no restaurante de janelas abertas, com perfumes de flores e este cheiro maior do verão.


Voltamos a conversar, dizemos coisas vagas e lentas, inteligentes, numa plenitude de bem-aventurados. O sol, que desceu um pouco mais, desliza nos copos, acende fogos no vidro e dá ao vinho uma transparência de fonte viva. Sentimo-nos bem, com o restaurante só para nós, rodeados de madeiras fulvas e toalhas coloridas.


É nesta altura que se dá o eclipse. Uma sombra interpõe-se entre nós e o mundo exterior. O sol afasta-se da mesa violentamente, e a mão de um homem passa a moldura da janela, avança e fica imóvel por cima da mesa - de palma para cima. O gesto é simples e não traz palavras a acompanhá-lo. Apenas a mão estendida, à espera, pairando como uma ave morta sobre os restos do almoço.


Ninguém fala. A mão recolhe-se apertando a esmola, e, sem agradecer, o homem afasta-se. Entreolhamo-nos devagar, com os lábios deliberadamente cerrados. De repente, tudo sabe a inútil e a cobardia. Depois, com mil cautelas, pegamos no carvão em brasa. Se não estivéssemos a almoçar, teríamos dado a esmola? E que teria acontecido se a recusássemos? Sentiríamos depois mais remorsos que de costume? Ou houve simplesmente o medo de que a mão seca e escura descesse como um milhafre sobre a mesa e arrancasse a toalha, no meio do estilhaçar dos vidros e das louças, num interminável e definitivo terramoto?"

Um comentário:

  1. Dr. Ricardo, mestre! Já li "alguns samaragos"... Alguns bons; outros nem tanto. A fama lhe chegou.. A imprensa vermelhinha bem que lhe ajudou ehehe! A literatura portuguesa tem muitas outras excelentes opções, pa! Abs PCSampaio

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