sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Saramago e o seu Manual de Pintura e Caligrafia

Saramago, no que diz respeito ao apreço pela linguagem em seu texto literário, pode ser comparado a João Cabral de Melo Neto na Poesia. Este livro não é muito conhecido do grande público, infelizmente. Como o próprio nome sugere, o Manual é um guia para o leitor admirar a obra desse escritor, via linguagem.

Estou analisando o trecho abaixo (brilhante, por sinal) em um artigo sobre semiótica discursiva que estou escrevendo para uma revista. Observem a função de cada palavra na constituição e descrição de um "quadro", que finda por instaurar um observador, capaz de ressentir, avaliar, apreciar ou afastar os objetos, ora aproximando-os, ora afastando-os do seu centro, modulando, assim, a significação. Neste excerto, a personagem principal, um pintor, descreve o seu atelier, após a visita da secretária de um de seus clientes, com a qual acabara de manter relação sexual, e a partida da faxineira, que, logo depois realizou a limpeza do ambiente:



Estou outra vez no silêncio do atelier, com a rua esquecida em baixo das janelas e as outras divisões da casa recuperando a solidão interrompida, enquanto os objectos mudados de lugar, bruscamente transplantados ou apenas arredados um milímetro, se habituam à nova posição, distendendo-se aliviados, como os lençóis lavados na cama, ou pelo contrário procurando acomodar-se à violência, como os lençóis sujos, enrolados no saco da lavanderia, cheirando a corpo frio (SARAMAGO, 1992, p. 70).

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

"O outro" Fernando Pessoa



Alberto Caeiro



O Universo

O universo não é uma idéia minha.
A minha idéia do Universo é que é uma idéia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

Também Sei Fazer Conjeturas

Também sei fazer conjeturas.

Há em cada cousa aquilo que ela é que a anima.

Na planta está por fora e é urna ninfa pequena.

No animal é um ser interior longínquo.

No homem é a alma que vive com ele e é já ele.

Nos deuses tem o mesmo tamanho

E o mesmo espaço que o corpo

E é a mesma cousa que o corpo.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

O eu, as coisas e a linguagem



Recebi inúmeros emails e alguns comentários a respeito da beleza deste poema. Posto novamente, para os novos visistantes.

"Eita, pernambucano porrreta!!!"


"Dúvidas apócrifas de Moore"


Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?
Não haverá nesse pudor
de falar-me uma confissão,
uma indireta confissão,
pelo avesso, e sempre impudor?
A coisa de que se falar
até onde está pura ou impura?
Ou sempre se impõe, mesmo impura-
mente, a quem dela quer falar?
Como saber, se há tanta coisa
de que falar ou não falar?
E se o evitá-la, o não falar,
é forma de falar da coisa?

João Cabral de Melo Neto

O livro das perguntas de Pablo Neruda


Livro, no mínimo, insólito... que nos reporta à poesia oriental (Haikai).

Observem a riqueza de matizes metafóricos, resultantes da coexistência de isotopias durante a leitura: haja imaginação...



onde termina o arco-íris,

em tua alma ou no horizonte?


Diz-me, a rosa está nua,

ou só tem esse vestido?


Porque se suicidam as folhas

quando se sentem amarelas?


Quantas igrejas tem o céu?


Como se chama uma flor

que voa de pássaro em pássaro?


e onde termina o espaço

se chama morte ou infinito?

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

As Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino


Calvino é lembrado como um dos grandes gênios da narrativa. Seu Livro "As cidades Invisíveis" é considerado por muitos críticos (inclusive pelo próprio Calvino) uma reflexão aprofundada da criação literária, uma espécie de mini-tratado da Literatura.

O livro consta de pequenos textos, que descrevem cidades imaginadas, ou melhor, relatadas pelo mercador de Veneza, Marco Polo, ao Imperador Kublai Khan: uma clara alusão ao clássico "As mil e uma noites". Dois detalhes merecem destaque: a) cada cidade recebe um nome de uma Mulher, b) cada cidade suscita um mundo que se constitui através dos sentidos (da audição, do odor, do paladar e de um olhar que não é o ver, mas o emergir na coisa); ou seja, cada texto porta uma revelação, mundos utópicos que são somente descortinados quando deitamos nosso olhar sobre ínfimos detalhes, à cata das ambigüidades e metáforas. A descrição espacial das cidades envolvidas nessa configuração imaginária é representativa da condição humana, das oscilações pelas quais o homem passa em seu constante embate com a realidade.



As cidades e o desejo
3

Há duas maneiras de se alcançar Despina: de navio ou de camelo. A cidade se apresenta de forma diferente para quem chega por terra ou por mar.
O cameleiro que vê despontar no horizonte do planalto os pináculos dos arranha-céus, as antenas de radar, os sobressaltos das birutas brancas e vermelhas, a fumaça das chaminés, imagina um navio; sabe que é uma cidade, mas a imagina como uma embarcação que pode afastá-lo do deserto, um veleiro que esteja para zarpar, com o vento que enche as suas velas ainda não completamente soltas, ou um navio a vapor com a caldeira que vibra na carena de ferro, e imagina todos os portos, as mercadorias ultramarinas que os guindastes descarregam nos cais, as tabernas em que tripulações de diferentes bandeiras quebram garrafas na cabeça umas das outras, as janelas térreas iluminadas, cada uma com uma mulher que se penteia.
Na neblina costeira, o marinheiro distingue a forma da corcunda de um camelo, de uma sela bordada de franjas refulgentes entre duas corcundas malhadas que avançam balançando; sabe que é uma cidade, mas a imagina como um camelo de cuja albarda pendem odres e alforjes de fruta cristalizada, vinho de tâmaras, folhas de tabaco, e vê-se ao comando de uma longa caravana que o afasta do deserto do mar rumo a um oásis de água doce à sombra cerrada das palmeiras, rumo a palácios de espessas paredes caiadas, de pátios azulejados onde as bailarinas dançam descalças e movem os braços para dentro e para fora do véu.
Cada cidade recebe a forma do deserto a que se opõe; é assim que o cameleiro e o marinheiro vêem Despina, cidade de confim entre dois desertos.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

A poesia de Borges

Sem comentários...
Afterglow


Sempre é comovedor o ocaso
por mais indigente e charro que seja,
porém mais comovedor ainda
é aquele brilho desesperado e final
que enferruja a planície
quando o sol último afundou.
Nos dói suster essa luz intensa e distinta,
essa alucinação que impõe ao espaço
o unânime medo da sombra
e que cessa de repente
quando notamos sua falsidade,
como cessam os sonhos
quando sabemos que sonhamos.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

O fantástico Borges e o Minotauro


Sem sombra de dúvida, Jorge Luis Borges é um dos grandes nomes da literatura mundial. Em sua escrita, precipitadamente rotulada de "fantástica", convergem não somente a erudição e o formalismo literário, mas também o tempo, os sonhos e a imaginação. Borges fazia questão de frisar que sempre fora um leitor voraz. A escrita seria apenas um exercício, uma consequência do hábito da leitura. Sou suspeito para falar de Borges: sua obra iniciou-me na Literatura e permanece encantadora e desafiadora para mim.

O conto dessa postagem releva um pouco dos "labirintos" mágicos da linguagem de Borges. Asterion é um dos nomes atribuídos ao Minotauro.




A Casa de Asterion
Jorge Luis Borges
Para Marta Mosquera Eastman

E a rainha deu à luz um
filho que se chamou Asterion.
APOLODORO: Biblioteca, III, I.

Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que castigarei no devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de casa, mas também é verdade que as suas portas (cujo número é infinito*) estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará aqui pompas femininas nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Por isso mesmo, encontrará uma casa como não há outra na face da terra. (Mentem os que declaram existir uma parecida no Egito.) Até meus detratores admitem que não há um só móvel na casa. Outra afirmação ridícula é que eu, Asterion, seja um prisioneiro. Repetirei que não há uma porta fechada, acrescentarei que não existe uma fechadura? Mesmo porque, num entardecer, pisei na rua; se voltei antes da noite, foi pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e iguais, como a mão aberta. O sol já se tinha posto mas o desvalido pranto de um menino e as preces rudes do povo disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, se prosternava; alguns se encarapitavam na estilóbata do templo das Tochas, outros juntavam pedras. Algum deles, creio, se ocultou no mar. Não é em vão que uma rainha foi minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo, ainda que o queira minha modéstia.
O fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escrita. As enfadonhas e triviais minúcias não encontram espaço em meu espírito, capacitado para o grande; jamais guardei a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. às vezes o deploro, porque as noites e os dias são longos.
Claro que não me faltam distrações. Como o carneiro que vai investir, corro pelas galerias de pedra até cair no chão, estonteado. Oculto-me à sombra duma cisterna ou à volta de um corredor e divirto-me com que me busquem. Há terraços donde me deixo cair, até ensangüentar-me. A qualquer hora posso fazer que estou dormindo, com os olhos cerrados e a respiração contida. (às vezes durmo realmente, às vezes já é outra a cor do dia quando abro os olhos.) Mas, de todos os brinquedos, o que prefiro é o do outro Asterion. Finjo que ele vem visitar-me e que eu lhe mostro a casa. Com grandes referências, lhe digo "Agora voltamos à encruzilhada anterior" ou "Agora desembocamos em outro pátio" ou "Bem dizia eu que te agradaria este pequeno canal" ou "Agora vais ver uma cisterna que se encheu de areia" ou "Já vais ver como o porão se bifurca". Às vezes me engano e rimo-nos os dois, amavelmente.
Não tenho pensado apenas nesses brinquedos; tenho também meditado sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, um pesebre; são catorze (são infinitos) os pesebres, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Todavia, de tanto andar por pátios com uma cisterna e com poeirentas galerias de pedra cinzenta, alcancei a rua e vi o templo das Tochas e o mar. Não entendi isso até uma visão noturna me revelar que também são catorze (infinitos) os mares e os templos. Tudo existe muitas vezes, catorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem existir uma só vez: em cima, o intrincado sol; embaixo, Asterion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já não me lembro.
A cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo o mal. Ouço seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para buscá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após outro caem sem que eu ensangüente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles, na hora da morte, profetizou que um dia vai chegar meu redentor. Desde então a solidão não me magoa, porque sei que meu redentor vive e que por fim me levantará do pó. Se meu ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. Oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? — me pergunto. Será um touro, ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? ou será como eu?
O sol da manhã rebrilhou na espada de bronze, já não restava qualquer vestígio de sangue.
— Acreditarás, Ariadne? — disse Teseu. — O minotauro apenas se defendeu.

* O original diz catorze, mas sobram motivos para inferir que, na boca de Asterion, esse adjetivo numeral valha por infinitos.