terça-feira, 27 de julho de 2010

Aos que querem e aos que não querem tempo


Tempo Sem Tempo

Canção de José Miguel Wisnik

Vê se encontra um tempo
pra me encontrar sem contratempo
por algum tempo o tempo dá voltas e curvas
o tempo tem revoltas absurdas
ele é e não é ao mesmo tempo
avenida das flores
e a ferida das dores
e só então de sopetão
entro e me adentro no tempo e no vento
e abarco e embarco no barco de Ísis e Osíris
sou como a flecha do arco do arco-íris
que despedaça as flores mais coloridas em mil fragmentos
que passa e de graça distribui amores de cristais totais sexuais celestiais
das feridas das queridas despedidas
de quem sentiu todos os momentos.

domingo, 18 de julho de 2010

Baudrillard em dois tempos


Dos pensadores franceses que já tive oportunidade de ler, Jean Baudrillard é aquele que considero o mais assistemático e generalista na exposição de suas ideias, mas nem por isso o menos instigante. Baudrillard é conhecido sobretudo pelas obras O sistema dos objetos e simulacros e simulações, onde expõe a originalidade e a complexidade de suas "teorias". Muitos o criticam pela sua principal característica, a liberdade de pensamento, alegando falta de rigor acadêmico. De fato, ele não gostava de ser rotulado de filósofo ou sociólogo e preferia ousar na abordagem de temas como a fragilidade do conceito de realidade, ciberespaço, tecnologia e a relação sociedade/consumo. Confesso que atualmente discordo de muitas de suas opiniões. Apesar de todas as restrições, merece ser lido. Dedicou-se intensamente à fotografia (vide foto ao lado). Faleceu em 2007.

"Saber desobedecer às leis e às regras morais, saber desobedecer aos outros é sinal de liberdade. Mas saber se desobedecer a si mesmo é o estágio último da liberdade. A obediência à sua vontade própria é um vício ainda pior do que a submissão às suas próprias paixões".
"O instante, essa linha divisória, é uma linha de destino: passado e futuro aí se separam para nunca mais se reencontrar. A existência, aliás, não é mais do que essa divergência sempre cada vez maior entre o passado e o futuro, até que a morte os reúna em um presente absoluto".
(Jean Baudrillard, A troca impossível, Ed. Nova Fronteira).

Cidades mortas


Recomendo o livro Cidades mortas, de Monteiro Lobato: uma reunião de contos que retrata, com crueza e certo sarcasmo, a decadência de lugarejos interioranos na época da prosperidade do café. Ótima oportunidade para conhecer outra faceta literária do escritor: a de contista que domina a narrativa com versatilidade, impondo uma escrita rigorosa, mas, ao mesmo tempo, pontuada pela ironia, pela crítica social e pelo estilo regionalista que o consagrou. Aos que somente o conheciam pelo Sítio do Picapau Amarelo e Jeca Tatu, bom proveito.


"A quem em nossa terra percorre tais e tais zonas, vivas outrora, hoje mortas, ou em via disso, tolhidas de insanavel caqueixa, uma verdade, que é um desconsolo, ressurte de tantas ruinas: nosso progresso é nomade e sujeito a paralisias subitas. Radica-se mal. Conjugado a um grupo de fatores sempre os mesmos, reflue com eles duma região para outra. Não emite peão. Progresso de cigano, vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de taperas.
A uberdade nativa do solo é o fator que o condiciona. Mal a uberdade se esvai, pela reiterada sucção de uma seiva não recomposta, como no velho mundo, pelo adubo, o desenvolvimento da zona esmorece, foge dela o capital – e com ele os homens fortes, aptos para o trabalho. E lentamente cai a tapera nas almas e nas coisas."

"A cidadezinha , onde moro, lembra soldado que fraqueasse na marcha e, não podendo acompanhar o batalhão, à beira do caminho se deixasse ficar, exausto e só, com os olhos saudosos pousados na nuvem de poeira erguida além."

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Palomar observa o céu

Em postagem antiga, comentei a originalidade da obra de Ítalo Calvino, tomando como exemplo seu livro As cidades invisíveis. Recomendo, do mesmo modo, Palomar, último livro publicado em vida por Calvino. Nele, o autor narra e descreve os pontos de vista da personagem principal, cujo nome intitula o livro, sobre a realidade que o cerca. Curioso é o fato de que Palomar é também o nome de um famoso observatório astronômico, localizado em San Diego, Califórnia (EUA). Não por acaso, Calvino constrói seu personagem como um telescópio ao contrário, voltado não para a amplidão do espaço, mas para os mínimos detalhes das coisas e fatos do cotidiano. Com maestria, o autor nos conduz a uma reflexão a respeito de várias questões que cercam a existência humana, sob o olhar aparentemente ingênuo do Senhor Palomar sobre cada objeto que percebe a sua volta. Segue um pequeno trecho:


Lua da tarde

Ninguém olha a lua da tarde, e é exatamente naquele momento que ela teria maior necessidade do nosso interesse, dado que a sua existência não está ainda assegurada. É uma sombra esbranquiçada que desponta do azul intenso de um céu carregado de luz solar; quem nos garante que conseguirá, uma vez mais, tomar forma e ganhar brilho? É tão frágil e pálida e franzina; só um dos seus lados começa agora a conquistar um contorno, claro como um arco de foice, o resto permanece ainda embebido de azul celeste. É como uma hóstia transparente, ou como uma pastilha semi-dissolvida; só que aqui o círculo branco não se está a dissolver, mas sim a concentrar-se, agregando-se à custa de manchas e sombras cinzento-azuladas, que não se percebe se pertencem à superfície lunar ou se são restos de baba do céu, que todavia impregnam o satélite, poroso como uma esponja.

Nesta fase o céu, é ainda qualquer coisa de muito compacto e concreto, e não podemos estar seguros se é da sua superfície tensa e ininterrupta que se vai destacando aquela forma redonda e esbranquiçada, com uma consistência pouco mais sólida do que a das nuvens, ou se, pelo contrário, se trata de uma corrosão do pano de fundo, uma malha caída da cúpula, uma brecha que se abre sobre o nada que se queda por detrás. A incerteza é acentuada pela irregularidade da figura, que por um lado vai adquirindo relevo (onde têm maior incidência os raios do sol declinante) e pelo outro se mantém numa espécie de penumbra.

Aliás, o que permanece agora incerto é se este ganhar em evidência e (digamo-lo) em esplendor se deve ao lento recuar do céu, que quanto mais se afasta mais mergulha na obscuridade, ou se pelo contrário é a lua que está a avançar, recolhendo a luz precedentemente dispersa à sua volta e privando dela o céu, concentrando-a toda na redonda boca do seu funil.