sábado, 30 de maio de 2009

A poesia de Julio Cortázar


Cortázar foi um mestre na arte do conto. Aos que não conhecem o viés poético de sua obra, apresento-lhes um belo poema, ou será um conto... que canta e que se conta... ?


PARA CRIS


Agora escrevo pássaros.

Não os vejo chegar, não escolho,

de repente estão aí,

um bando de palavras

a pousar

uma

por

uma

nos arames da página,

entre chilreios e bicadas,

chuva de asas,

e eu sem pão para dar,

tão somente deixo-os vir.

Talvez seja isto uma árvore,

ou quem sabe, o amor.


Tradução Sidnei Schneider, 2007


PARA CRIS


Ahora escribo pájaros.

No los veo venir, no los elijo,

de golpe están ahí,

son esto, una bandada de palabras

posándo se una

a

una

en los alambres de la página,

chirriando, picoteando,

lluvia de alas

y yo sin pan que darles, solamente

dejándolos venir.

Talvez sea eso un árbolo

talvez el amor.


Julio Cortázar, Cinco últimos poemas para CrisSalvo el crepúsculo, 1984.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

VOZES ANOITECIDAS Mia Couto




Os trechos abaixo resumem a essência deste premiado livro de contos, de Mia Couto.



"O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma. Confrontados com a ausência de tudo, os homens abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros. Existe no nada essa ilusão de plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes".

"[...] Ele ficou deitado a respirar. A vida dele estava toda ali, repartida nas costelas que subiam e desciam. Neste deserto solitário, a morte um simples deslizar, um recolher de asas. Não um rasgão violento como nos lugares onde a vida brilha.
- Mulher - disse ele com voz desaparecida. - Não lhe posso deixar assim.
- Estás a pensar o quê?
- Não posso deixar aquela campa (cova) sem proveito. Tenho que matar-te.
- É verdade, marido. Você teve tanto trabalho para fazer aquele buraco. E uma pena ficar assim.
- Sim, hei-de matar você; hoje no, falta-me o corpo.
Ela ajudou-o a erguer-se e serviu-lhe uma chávena de chá.
- Bebe, homem. Bebe para ficar bom, amanhã precisas da força.
O velho adormeceu, a mulher sentou-se porta. Na sombra do seu descanso viu o sol vazar, lento rei das luzes. Pensou no dia e riu-se dos contrários: ela, cujo nascimento faltara nas datas, tinha já o seu fim marcado [...]".


"Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não das raças, mas de existências".




Diante das escolhas feitas pelas personagens desses contos, provocadas ora pela consciência da sua condição, ora pela ausência dela, o autor suscita no leitor sentimentos díspares como a resignação, o alívio, a admiração e até o aperto da poesia, decorrentes das lutas travadas, ali, entre a vida e o seu destino. Recomendo!

terça-feira, 12 de maio de 2009

Elogio da sombra (Jorge Luis Borges)


Um livro de Borges pelo qual tenho muito apreço é Elogio da Sombra. Quinto livro de poemas e pequenos textos em prosa do autor, foi escrito quando este já contava com 70 anos, em 1969. Selecionei dois poemas que sintetizam o cerne do livro: uma oportunidade de o leitor conhecer o universo de formas, motivos e imagens que, em grande medida, povoa a obra literária desse grande escritor.


As coisas

A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro.
Um livro e em suas páginas a seca
Violeta, monumento a uma tarde
Sem dúvida inolvidável e já olvidada,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além de nosso esquecimento;
Nunca saberão que nos fomos num momento.

HERÁCLITO

O segundo crepúsculo.
A noite que mergulha no sono.
A purificação e o esquecimento.
O primeiro crepúsculo.
A manhã que foi a aurora.
O dia que foi a manhã.
O dia numeroso que será a tarde desgastada.
O segundo crepúsculo.
Esse outro hábito do tempo, a noite.
A purificação e o esquecimento.
O primeiro crepúsculo...
A aurora sigilosa e na aurora
a inquietude do grego.
Que trama é esta
do será, do é e do foi?
Que rio é este
pelo qual flui o Ganges?
Que rio é este cuja fonte é inconcebível?
Que rio é este
que arrasta mitologias e espadas?
É inútil que durma.
Corre no sonho, no deserto, num porão.
O rio me arrebata e sou esse rio.
De matéria perecível fui feito, de misterioso tempo.
Talvez o manancial esteja em mim.
Talvez de minha sombra,
fatais e ilusórios, surjam os dias.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Ainda o "Manual de Pintura e Caligrafia" de Saramago

Havia já comentado em postagem anterior o domínio da língua Portuguesa por Saramago nesse grande romance, quando não era ainda consagrado com um Nobel de Literatura. Aqui, deixo mais dois belissímos trechos:

Provavelmente, nenhuma vida pode ser contada, porque a vida são páginas de livro sobrepostas ou camadas de tinta que abertas ou descascadas para leitura e visão logo se desfazem em poeira, logo apodrecem: falta-lhes a invisível força que as ligava, o seu próprio peso, a sua aglutinação, a sua continuidade. A vida são também minutos que não podem desligar-se uns dos outros, e o tempo será uma massa pastosa, densa e obscura, no interior da qual nadamos dificilmente, tendo por cima de nós uma claridade indecifrada que devagar se vai apagando, como um dia que, tendo amanhecido, à noite de que saiu regressasse (p. 91).



Particularmente me fascina o jogo geográfico que salta de Itálica (Espanha, perto de Sevilha) para Roma, de Roma para Londres, de Londres para York, de York para Genebra e de Genebra para o lugar onde nasceu Marguerite Vourcenar, que não sei nem vou saber. Porque ela própria, lançando palavras por cima de séculos e de distâncias menores que séculos, pôs Adriano a escrever: «O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que, pela primeira vez, se lança um olhar inteligente sobre si mesmo.» Onde assim nasceu Defoe? Onde assim nasceu Rousseau? Onde assim nasceu Yourcenar? Onde nasci eu, pintor, calígrafo, nado-morto enquanto não estiver decidido onde, quando e se um olhar inteligente foi lançado sobre mim mesmo? Falta saber se, desta maneira descoberto o lugar do nascimento, poderemos recuperar e continuar o olhar de entendimento ou, pelo contrário, nos perderemos em novas geografias (p.96).