sábado, 6 de novembro de 2010

Albert Camus (parte II): O mito de Sísifo




Em 1942, o Escritor Albert Camus escreveu um ensaio filosófico intitulado "O mito de Sísifo", em que apresenta sua filosofia do absurdo, por meio de temas como a morte e o suicídio. Para ele, essa filosofia se resume ao homem fútil em busca de sentido, unidade e clareza no rosto de um mundo ininteligível, desprovido de Deus e eternidade. Vejamos um trecho:


"Posso negar tudo dessa parte de mim que vive de nostalgias incertas, salvo esse desejo de unidade, esse apetite de resolver, essa exigência de clareza e de coesão. Posso refutar tudo nesse mundo que me rodeia, me choca e me arrebata, excepto este caos, este acaso-rei e esta equivalência divina que nasce da anarquia. Não sei se este mundo tem um sentido que o ultrapassa. Mas sei que não conheço tal sentido e que de momento me é impossível conhecê-lo. Que significa para mim um significado fora da minha condição? Só posso compreender em termos humanos. O que toco, o que me resiste, eis o que compreendo. E ainda sei que não posso conciliar essas duas certezas, o meu apetite de absoluto e de unidade e a irredutibilidade deste mundo a um princípio racional e razoável. Que outra verdade posso reconhecer sem mentir, sem fazer intervir uma esperança que não tenho e nada siginifica nos limites da minha condição?" (Albert Camus – O Mito de Sísifo. Ensaio sobre o absurdo)

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O homem revoltado, de Albert Camus (parte I)


"Les héros ont notre langage, nos faiblesses, nos forces. Leur univers n´est ni plus beau ni plus édifiant que le nôtre. Mais eux du moins courent jusqu´au bout de leur destin(...). C´est ici que nous perdons leur mesure, car ils finissent alors ce que nous ná chevons jamais.”



"Os heróis têm nossa linguagem, nossas fraquezas, nossas forças.
Seu universo não é, nem mais belo nem mais edificante do que o nosso.
Mas eles correm até o fim de seu destino(...) .É nesse ponto que perdemos sua medida, pois eles conseguem finalizar aquilo que jamais conseguimos.”





terça-feira, 26 de outubro de 2010

Notas sobre a Paixão em Semiótica

O nosso grupo de pesquisa -SEMIOce (Grupo de Estudos Semióticos da Universidade Federal do Ceará)- discute, no momento, a semiótica das paixões: tema intrigante e desafiador, a começar pela leitura densa do livro homônimo de Greimas e Fontanille.
Abaixo deixo uma passagem muito elucidativa a respeito do modo como a semiótica trata as paixões. Foi colhida de outro livro: Tensão e Significação, o tratado de Semiótica Tensiva, de Fontanille e Zilberberg (p. 299-300)

"[...]De certo modo, vivenciar uma paixão seria mesmo conformar-se a uma identidade cultural e buscar a significação de nossas emoções e afetos na sua maior ou menor conformidade às taxionomias acumuladas em nossa própria cultura.

Por conseguinte, não pode haver configuração passional sem observador culturalmente competente: uma emoção ou afeto exigem apenas um corpo que sente, e são por isso simples acidentes do devir proprioceptivo, um fazer reativo ou adaptativo de primeiro grau. Já uma paixão é um 'acontecimento' em sentido estrito, isto é, uma tranformação apreendida e reconhecida por um observador. O não reconhecimento dos signos da paixão é um dos motivos mais estereotipados de todas as histórias de amor. Todos os sinais, todas as condições podem estar reunidas, mas é necessário que os parceiros se entendam sobre o lugar desse conjunto na taxionomia passional própria à sua cultura, e até mesmo que eles identifiquem e pronunciem de comum acordo o nome dessa paixão".

"[...]Isso significa que, assim que uma paixão é identificada e denominada, não estamos mais na ordem da dimensão passional viva, mas na dos estereótipos culturais da afetividade. Não podemos portanto começar a descrição das paixões identificando 'unidades' ou 'signos' passionais, sobretudo lexicais, pois tal identificação está de imediato submetida ao crivo cultural do observador".

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Lembrando Fernando Pessoa


A coisa estranha e muda em todo o corpo,
Que está ali, ebúrnea, no caixão,
O corpo humano que não é corpo humano
Que ali se cala em todo o ambiente;
O cais deserto que ali aguarda o incógnito
O assombro álgido ali entreabrindo
A porta suprema e invisível;
O nexo incompreensível
Entre a energia e a vida,
Ali janela para a noite infinita...
Ele — o cadáver do outro,
Evoca-me do futuro
[Eu próprio dois?], ou nem assim...

E embandeiro em arco a negro as minhas esperanças
Minha fé cambaleia como uma paisagem de bêbedo,
Meus projectos tocam um muro infinito até infinito.

(Álvaro de Campos)

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Leonid Afremov e Greimas

“Querer dizer o indizível, pintar o invisível: provas de que a coisa, única, adveio, que outra coisa seja talvez possível. Nostalgias e esperas alimentam o imaginário cujas formas, murchas ou desabrochadas, substituem a vida: a imperfeição, desviante, cumpre assim, em parte, seu papel. Vãs tentativas de submeter o cotidiano ou dele esvair-se: busca do inesperado que foge. E, todavia, os valores ditos estéticos são os únicos próprios, os únicos que, rejeitando toda negatividade, nos arremessam para o alto. A imperfeição aparece como um trampolim que nos projeta da insignificância em direção ao sentido. O que resta? A inocência: sonho de um retorno às nascentes quando o homem e o mundo constituíam um só numa pancália original. Ou a vigilante espera de uma estesia única, de um deslumbramento ante o qual não nos encontraríamos obrigados a fechar as pálpebras. Mehr Licht!"
(Greimas, A, J. Da imperfeição, p. 91).

Notas de Sartre sobre a tristeza e a alegria.

Lendo o pequeno livro de Sartre, Esboço para uma teoria das emoções, deparo-me com os trechos abaixo, em que o autor fala da abordagem fenomenológica da (s) tristeza (s) e da alegria:
A tristeza passiva visa a suprimir a obrigação do sujeito-triste de buscar novos meios que substituam os meios antigos, de transformar a esttutura do mundo substituindo sua constituição presente por uma estrutura totalmente indiferenciada. "trata-se, em suma, de fazer do mundo uma realidade afetivamente neutra, um sistema em equilibrio afetivo total, de abandonar os objetos com forte carga afetiva, de levá-los todos ao zero afetivo e, desse modo, aprendê-los como perfeitamente equivalentes e intercambiavéis". " Em outras palavras, por não poder e querer realizar os atos que projetávamos, fazemos de modo que o universo nada mais exija de nós."
A tristeza ativa, por seu turno, implica uma espécie de recusa, de abandono de responsabilidade. "Há um exagero mágico das dificuldades do mundo. Este conserva, portanto, sua estrutura diferenciada, mas aparece como injusto ou hostil porque exige muito de nós, isto é, mais do que é humanamente possível lhe dar". Tudo permanece, então, 'por fazer', pois o sujeito-triste retira de si a responsabilidade do querer fazer, pondo em seu lugar somente o 'desejar fazer algum dia'.
A alegria, para Sartre, é vista como um estado de euforia, de impaciência, no qual o sujeito-alegre "não fica quieto, faz mil projetos, esboça condutas que abandona em seguida, etc. É que, de fato, sua alegria foi provocada pelo aparecimento do objeto de seus desejos[...]. Mas, embora esse objeto seja 'iminente', ele ainda não está aí, ainda não é dele. Uma certa duração o separa do objeto. E mesmo se está aí, mesmo se o amigo tão desejado aparece na plataforma da estação de trens, mesmo assim é um objeto que só se entrega aos poucos, em breve o prazer que temos de revê-lo vai se atenuar: nunca conseguiremos tê-lo aí, diante de nós, como nossa propriedade absoluta, e percebê-lo de uma só vez, como uma totalidade [...]. A alegria é uma conduta mágica que tende a realizar por encatamento a posse do objeto desejado como totalidade instantânea. Essa conduta é acompanhada pela certeza de que a posse será realizada cedo ou tarde, mas ela busca antecipar essa posse".

sábado, 18 de setembro de 2010

Justificativa e retorno

Ando alheio ao blog. Nas últimas semanas, a vida acadêmica tem suplantado a vida de Blogueiro. Prometo retomar a regularidade das postagens no início de outubro, assim que honrar os prazos estipulados para a conclusão de uma série de atividades na Universidade.

Contudo, não esqueço o blog: escrevo um artigo (de Semiótica Discursiva) que examina as imagens do corpo, construídas em anúncios classificados de serviço de sexo pelas operações enunciativas de debragem e embreagem. Ontem à noite, me deparo (olha uma embreagem aí) com os trechos abaixo em um livro de Válery sobre Jorge Degas (o pintor-escultor das bailarinas, cavalos, etc.), que muito se relacionam com o que estou escrevendo no artigo:

" As coisas nos olham. O mundo visível é um excitante perpétuo: tudo desperta ou alimenta o instinto de se apropriar da figura ou do modelado da coisa que o olhar constrói".

" 'O modo de ver' do qual falava Degas deve portanto ser entendido de forma ampla e incluir: o modo de ser, poder, saber, querer...".

"Em todos os gêneros, o homem verdadeiramente bom é aquele que mais sente que nada nos é dado, que é preciso tudo construir, tudo comprar; e que treme quando não sente a existência de obstáculos; que os cria... Nele, a forma é uma decisão motivada". (Paul Valéry. In Degas Dança Desenho, Cosac & Naify).

sábado, 28 de agosto de 2010

M(eu) eu e M(eu)s outros

Ouvi batidas à porta de mim
e deparei comigo ao me abrir:
era eu a querer de mim fugir,
do labirinto que sou eu - sem fim...
Meus olhos os meus olhos invadiram,
e o que vi dessa visão foi só eu
na sede mansa de encontrar no breu
a porta que meus dedos já abriram...
A porta a ser aberta lá estava,
e quando ia abri-la, deste lado,
do outro j'[a me sinto preparado
neste gesto de mão que a destrava...
E quem tudo isso agora me contou
não foi este que sou, mas o que estou.
(Marcos Bagno, Vaganau)

sábado, 7 de agosto de 2010

Belas e esquecidas canções II


Fumo
Raimundo Fagner / poema de Florbela Espanca


Longe de ti são ermos os caminhos

Longe de ti não há luar nem rosas

Longe de ti há noites silenciosas

Há dias sem calor, beirais sem ninhos


Meus olhos são dois velhos pobrezinhos

Perdidos pelas noites invernosas

Abertos sonham mãos cariciosas

Tuas mãos doces, plenas de carinhos


Os dias são outonos, choram, choram

Há crisântemos roxos que descoram

Há murmúrios dolentes de segredos
Invoco o nosso sonho, estendo os braços



E é ele, ó meu amor, pelos espaços

Fumo leve que foge entre meus dedos.




Dono Dos Teus Olhos
Humberto Teixeira

Não te esqueças que eu sou dono dos teus olhos
Faz favor de não espiar pra mais ninguém
Esse azul cor de promessa dos teus olhos
Faz qualquer cristão gostar de tu também
Que nosso senhor perdoe os meus ciúmes
Quando penso em cegar os olhos teus
Pra que euSomente eu seja teu guia
Os olhos dos teus olhos
A luz dos olhos teus

terça-feira, 27 de julho de 2010

Aos que querem e aos que não querem tempo


Tempo Sem Tempo

Canção de José Miguel Wisnik

Vê se encontra um tempo
pra me encontrar sem contratempo
por algum tempo o tempo dá voltas e curvas
o tempo tem revoltas absurdas
ele é e não é ao mesmo tempo
avenida das flores
e a ferida das dores
e só então de sopetão
entro e me adentro no tempo e no vento
e abarco e embarco no barco de Ísis e Osíris
sou como a flecha do arco do arco-íris
que despedaça as flores mais coloridas em mil fragmentos
que passa e de graça distribui amores de cristais totais sexuais celestiais
das feridas das queridas despedidas
de quem sentiu todos os momentos.

domingo, 18 de julho de 2010

Baudrillard em dois tempos


Dos pensadores franceses que já tive oportunidade de ler, Jean Baudrillard é aquele que considero o mais assistemático e generalista na exposição de suas ideias, mas nem por isso o menos instigante. Baudrillard é conhecido sobretudo pelas obras O sistema dos objetos e simulacros e simulações, onde expõe a originalidade e a complexidade de suas "teorias". Muitos o criticam pela sua principal característica, a liberdade de pensamento, alegando falta de rigor acadêmico. De fato, ele não gostava de ser rotulado de filósofo ou sociólogo e preferia ousar na abordagem de temas como a fragilidade do conceito de realidade, ciberespaço, tecnologia e a relação sociedade/consumo. Confesso que atualmente discordo de muitas de suas opiniões. Apesar de todas as restrições, merece ser lido. Dedicou-se intensamente à fotografia (vide foto ao lado). Faleceu em 2007.

"Saber desobedecer às leis e às regras morais, saber desobedecer aos outros é sinal de liberdade. Mas saber se desobedecer a si mesmo é o estágio último da liberdade. A obediência à sua vontade própria é um vício ainda pior do que a submissão às suas próprias paixões".
"O instante, essa linha divisória, é uma linha de destino: passado e futuro aí se separam para nunca mais se reencontrar. A existência, aliás, não é mais do que essa divergência sempre cada vez maior entre o passado e o futuro, até que a morte os reúna em um presente absoluto".
(Jean Baudrillard, A troca impossível, Ed. Nova Fronteira).

Cidades mortas


Recomendo o livro Cidades mortas, de Monteiro Lobato: uma reunião de contos que retrata, com crueza e certo sarcasmo, a decadência de lugarejos interioranos na época da prosperidade do café. Ótima oportunidade para conhecer outra faceta literária do escritor: a de contista que domina a narrativa com versatilidade, impondo uma escrita rigorosa, mas, ao mesmo tempo, pontuada pela ironia, pela crítica social e pelo estilo regionalista que o consagrou. Aos que somente o conheciam pelo Sítio do Picapau Amarelo e Jeca Tatu, bom proveito.


"A quem em nossa terra percorre tais e tais zonas, vivas outrora, hoje mortas, ou em via disso, tolhidas de insanavel caqueixa, uma verdade, que é um desconsolo, ressurte de tantas ruinas: nosso progresso é nomade e sujeito a paralisias subitas. Radica-se mal. Conjugado a um grupo de fatores sempre os mesmos, reflue com eles duma região para outra. Não emite peão. Progresso de cigano, vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de taperas.
A uberdade nativa do solo é o fator que o condiciona. Mal a uberdade se esvai, pela reiterada sucção de uma seiva não recomposta, como no velho mundo, pelo adubo, o desenvolvimento da zona esmorece, foge dela o capital – e com ele os homens fortes, aptos para o trabalho. E lentamente cai a tapera nas almas e nas coisas."

"A cidadezinha , onde moro, lembra soldado que fraqueasse na marcha e, não podendo acompanhar o batalhão, à beira do caminho se deixasse ficar, exausto e só, com os olhos saudosos pousados na nuvem de poeira erguida além."

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Palomar observa o céu

Em postagem antiga, comentei a originalidade da obra de Ítalo Calvino, tomando como exemplo seu livro As cidades invisíveis. Recomendo, do mesmo modo, Palomar, último livro publicado em vida por Calvino. Nele, o autor narra e descreve os pontos de vista da personagem principal, cujo nome intitula o livro, sobre a realidade que o cerca. Curioso é o fato de que Palomar é também o nome de um famoso observatório astronômico, localizado em San Diego, Califórnia (EUA). Não por acaso, Calvino constrói seu personagem como um telescópio ao contrário, voltado não para a amplidão do espaço, mas para os mínimos detalhes das coisas e fatos do cotidiano. Com maestria, o autor nos conduz a uma reflexão a respeito de várias questões que cercam a existência humana, sob o olhar aparentemente ingênuo do Senhor Palomar sobre cada objeto que percebe a sua volta. Segue um pequeno trecho:


Lua da tarde

Ninguém olha a lua da tarde, e é exatamente naquele momento que ela teria maior necessidade do nosso interesse, dado que a sua existência não está ainda assegurada. É uma sombra esbranquiçada que desponta do azul intenso de um céu carregado de luz solar; quem nos garante que conseguirá, uma vez mais, tomar forma e ganhar brilho? É tão frágil e pálida e franzina; só um dos seus lados começa agora a conquistar um contorno, claro como um arco de foice, o resto permanece ainda embebido de azul celeste. É como uma hóstia transparente, ou como uma pastilha semi-dissolvida; só que aqui o círculo branco não se está a dissolver, mas sim a concentrar-se, agregando-se à custa de manchas e sombras cinzento-azuladas, que não se percebe se pertencem à superfície lunar ou se são restos de baba do céu, que todavia impregnam o satélite, poroso como uma esponja.

Nesta fase o céu, é ainda qualquer coisa de muito compacto e concreto, e não podemos estar seguros se é da sua superfície tensa e ininterrupta que se vai destacando aquela forma redonda e esbranquiçada, com uma consistência pouco mais sólida do que a das nuvens, ou se, pelo contrário, se trata de uma corrosão do pano de fundo, uma malha caída da cúpula, uma brecha que se abre sobre o nada que se queda por detrás. A incerteza é acentuada pela irregularidade da figura, que por um lado vai adquirindo relevo (onde têm maior incidência os raios do sol declinante) e pelo outro se mantém numa espécie de penumbra.

Aliás, o que permanece agora incerto é se este ganhar em evidência e (digamo-lo) em esplendor se deve ao lento recuar do céu, que quanto mais se afasta mais mergulha na obscuridade, ou se pelo contrário é a lua que está a avançar, recolhendo a luz precedentemente dispersa à sua volta e privando dela o céu, concentrando-a toda na redonda boca do seu funil.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Adeus...Saramago.


Várias foram as postagens, neste blog, acerca da grandeza de José Saramago . Nada mais justo. Em sua obra, o escritor conseguiu, como poucos, desvelar a beleza e a riqueza formal da Língua Portuguesa. Vai-se o homem, ficam as obras. Felizmente.


"É esta a paciência do tempo. Na gruta imensa, o tempo está aproximando duas pedras insignificantes e promete a silenciosa união para daqui a duzentos anos. À hora a que escrevo, pela noite dentro, a caverna está decerto em escuridão profunda. Ouve-se o pingar das águas soltas sobre os lagos sem peixes - enquanto em silêncio a montanha verte a gota vagarosa da promessa.

A paciência do tempo. Duzentos anos a fabricar pedra, a construir uma pequena coluna, um mísero toco em que ninguém reparará depois. Duzentos anos de trabalho monótono e aplicado, indiferente às maravilhas que cobrem as paredes altíssimas da gruta e fazem rebentar flores de pedra do chão. Duzentos anos assim, só porque assim tem de ser.


Falo do tempo e de pedras, e, contudo, é em homens que penso. Porque são eles a verdadeira matéria do tempo, a pedra de cima e a pedra de baixo, a gota de água que é sangue e é tam bém suor. Porque são eles a paciente coragem, e a longa espera, e o esforço sem limites, a dor aceite e recusada - duzentos anos, se assim tiver de ser (Saramago, a bagagem do viajante)".

"É natural, o costume é morrer, e morrer só se torna alarmante quando as mortes se multiplicam, uma guerra, uma epidemia, por exemplo"(Saramago, as intermitências da morte).

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Dia dos (e) namorados


À musa (Marcos Bagno)

Faz muito tempo que não te visito
em sua casa de soluço e sombra,
em tua oficina escura de brandas inutilidades,
cinzéis diáfanos
forjas vaporosas
bigornas de névoa,

instrumentos que se me oferecem, trêmulos,
decerto temerosos de não mais caberem
na fôrma dessacralizada dos meus dedos.

Houve um tempo em que éramos tão facéis,
tão imediatos em nos reconhecermos,
eu sempre lesto e ávido a recolher teus nomes,
tu a me derramares um cântaro inesgotável deles.

Hoje, transcorridos séculos de ausência,
venho de novo bater à tua porta,
saudoso de ti e de mim,
arrependido de minha prologanda apostasia,
mendigo das migalhas do teu banquete.

- Posso?



sábado, 5 de junho de 2010

O sujeito do discurso amoroso

Em Fragmentos do discurso amoroso, livro que já foi considerado best seller no Brasil (na época, virou peça de teatro, protagonizada por ator global), Roland Barthes recolhe "cacos de discursos" de textos de origens diversas (literatura, Psicanálise, filosofia, Zen budismo etc.) para tentar flagrar, por meio da linguagem, a presença de um sujeito "amoroso" transdiscursivo. Seguem três trechos do livro, para incitá-los à leitura:


"'Estarei enamorado? Claro que sim, já que espero'. O outro, este, nunca espera. às vezes, quero bancar aquele que não espera; tento me ocupar com outra coisa, chegar atrasado; mas, nesse jogo sempre perco; faça o que fizer, acabo sempre ocioso, pontual, adiantado mesmo. A identidade fatal do amante nada mais é que: sou aquele que espera" (p. 166-167).


"As palavras nunca são loucas (no máximo perversas), é a sintaxe que é louca: não é acaso no nível da frase que o sujeito busca seu lugar - e não o encontra - ou encontra um lugar falso que lhe é imposto pela língua?" (P. 21).



"Eu te amo não tem empregos. Essa palavra, tanto quanto a de uma criança, não é entendida a partir de nenhuma coerção social; pode ser uma palavra sublime, solene, ligeira, pode ser uma palavra erótica, pornográfica. É uma palavra socialmente errante" (p. 174).

domingo, 30 de maio de 2010

O discurso científico e a Semiótica


"O discurso da pesquisa é apanhado em sua própria contradição. Para poder dizer o que busca, ser-lhe-ia preciso já o ter encontrado. Se fosse esse o caso, porém, só lhe restaria calar-se, exceto se se tornasse outro, didático, por exemplo, ou, por que não, promocional. Inversamente, se ele fala, e até, se não para de falar, é porque seu próprio fim, em parte, continua a escapar-lhe. E, é claro, ao buscá-lo, ele se está buscando. É, portanto, duas vezes uma ausência (relativa), a do objeto, sempre a construir ou a reconstruir, e aquela que ele experimenta em relação a si mesmo, que o fundamenta e o motiva.

No entanto, já que assim é a lei do gênero, chega um momento em que ele precisa 'se apresentar': nomear-se mostrando-se, situar-se dizendo do que se ocupa, em suma, alegar o que é, como se conhecesse a própria identidade e soubesse exatamente o que faz, enunciando-se: como se fosse transparente ao próprio olhar e já inteiramente presente diante de si mesmo" (LANDOWSKI, E. Presenças do outro, ed. Perspectiva, São Paulo, p. 09)

* Intitulei esta foto de "A presença do sentido". Extraída do blog do Érico www.memoriasdaescrita.wordpress.com

terça-feira, 25 de maio de 2010

Belas e esquecidas canções I

Sem desmerecer o modo hodierno de se fazer, vender e apreciar música, em seus mais inusitados e mesclados "gêneros", devo dizer que sinto saudades da velha e boa MPB: linguística e poeticamente inteligente, harmônica e melodicamente rica, enfim: equilibrada e bela. Hoje ouvi, em restaurante vegetariano, duas pérolas de Gilberto Gil, dos tempos áureos de criação musical:
Pai e Mãe (Gilberto Gil)

Eu passei muito tempo aprendendo a beijar
Outros homens como beijo o meu pai
Eu passei muito tempo pra saber que a mulher
Que eu amei, que amo, que amarei
Será sempre a mulher como é minha mãe

Como é, minha mãe?
Como vão seus temores?
Meu pai, como vai?

Diga a ele que não se aborreça comigo
Quando me vir beijar outro homem qualquer
Diga a ele que eu quando beijo um amigo
Estou certo de ser alguém como ele é

Alguém com sua força pra me proteger
Alguém com seu carinho pra me confortar
Alguém com olhos e coração bem abertos
Para me compreender

A linha e o linho (Gilberto Gil)

É a sua vida que eu quero bordar na minha
Como se eu fosse o pano e você fosse a linha
E a agulha do real nas mãos da fantasia
Fosse bordando ponto a ponto nosso dia-a-dia
E fosse aparecendo aos poucos nosso amor
Os nossos sentimentos loucos, nosso amor
O zig-zag do tormento, as cores da alegria
A curva generosa da compreensão
Formando a pétala da rosa, da paixão

A sua vida o meu caminho, nosso amor
Você a linha e eu o linho, nosso amor
Nossa colcha de cama, nossa toalha de mesa
Reproduzidos no bordado
A casa, a estrada, a correnteza
O sol, a ave, a árvore, o ninho da beleza

domingo, 16 de maio de 2010

O inferno dos poetas

Tido como grande expoente do parnasianismo brasileiro, Olavo Bilac foi fortemente influenciado pela poesia francesa e, pelo visto, en passant, pela italiana. Em seus poemas, encontramos correção da linguagem, rigor da forma e forte apelo emocional. O poema abaixo, propositadamente, remete ao início de uma grande obra da literatura universal : "Nel mezzo del cammin di nostra vita / mi ritrovai per una selva oscura / ché la diritta via era smarrita" (Dante Alighieri, Divina Comédia, inferno, canto primo). Para o bom entendedor...belíssimo soneto:
Nel mezzo del camin...(Olavo Bilac)

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Cahier B 1910 / Paul Valéry

« Tard, ce soir, brille plus simplement ce reflet de ma nature : horreur instinctive, désintéressement de cette vie humaine particulière. Drames, comédies, romans meme singuliers et surtout ceux qui se disent « intenses »- Amours, joies, angoisses, tous les sentiments m’épouvantent ou m’ennuient […] Je frémis avec dégôut et la plus grande inquiétude se peut mêler en moi à la certitude de sa vanité, de sa sottise, à la connaissance d’être la dupe et le prisonnier de mon reste, enchaîné à ce qui souffre, espère, implore, se flagelle à côté de mon fragment pur.

Pourquoi me dévores-tu, si j’ai prévu ta dent ? Mon idée la plus intime est de ne pouvoir être celui que je suis. Je ne puis pas me reconnaître dans une figure finie. Et moi s’enfuit toujours de ma personne que cependant il dessine ou imprime en la fuyant».


Tarde, esta noite, brilha mais simplesmente este reflexo de minha natureza: horror instintivo, desinteresse desta vida humana particular. Dramas, comédias, romances, mesmo singulares e, sobretudo, aqueles que se dizem “intensos”. Amores, alegrias, angústias, todos os sentimentos me apavoram ou me aborrecem; e o pavor não impede o aborrecimento. Eu tremo com desgosto e a maior das inquietudes pode me envolver, certa de sua vanidade, de sua estupidez, sabendo ser “o tolo e o prisioneiro” do tempo que me resta, acorrentado àquele que sofre, espera, implora, se flagela, ao lado do meu fragmento puro.

Por que me devoras, se previ teu dente? Minha ideia mais íntima é poder não ser nada além daquilo que sou. Eu não posso me reconhecer em uma figura finita. E o EU foge sempre de minha pessoa, que, apesar disso, ele desenha ou imprime na fuga. (Tradução livre: Lívia Mesquita).

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Reflexão....



Eu não sou eu, nem o outro

Sou qualquer coisa de intermédio,

Pilar da ponte de tédio,

Que vai de mim para o outro.



Mário de Sá Carneiro

terça-feira, 20 de abril de 2010

Do Talento dos amigos IV

É sempre um grande prazer, para um professor, falar de seus bons alunos. Destaco abaixo pequenos poemas de dois (ex)alunos. Exemplos de "juventude inspirada" :

Difícil compreender tal disparate:

Que alguém aspire à vida, mas bem forte

A inspire em torpes fumos cor de morte -

Fiando, embora, que isto não o mate.



Há vias outras várias pro desgaste:

Qual o sujeito que, de sede tanta,

Destila o mundo e o sorve - até espanta

Que dia e noite e tanto ainda não baste.



Já um não sabe o ar; e o outro, a água;

E postas têm as vísceras em mágoa.

Seguir tais vícios podes, se o quiseres,



Mas eu prefiro noutro extravagar -

Que todos nalgo temos de folgar.

Quanto a mim? Eu me gasto é com as mulheres!



Amante Inveterado (Daniel Pacheco)



Suicídio


-Estou cansado de tudo,


Disse o peixe

E se deitou na rede.

Tito de Andréa

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Do talento dos amigos III


Dedico esta postagem ao amigo e comentarista assíduo deste blog: Érico Baymma. Conheço seu talento musical de longas datas (como compositor, arranjador e intérprete, principalmente). Para mim, foi surpresa (acho que para ele também, ao ver meu blog) saber que também gostava de escrever. Seu texto é inquieto e provocador... Algumas vezes confuso e suspenso, mas não menos inteligente. Como também é artista plástico, seu blog contém um acervo de belas imagens, algumas das quais já inspiraram este que vocês visitam.


Convido-os para conhecerem seu blog: http://www.memoriasdaescrita.wordpress.com/. Deixo abaixo trechos de algumas de suas postagens:

“Onde queria estar? Onde é mesmo que eu queria estar? Ausentam-me memórias, restam-me palavras. Serei capaz de sobreviver somente com o recurso das palavras? Quais são os recursos das palavras? A quê… o quê? Ahn? Eu, o quê? Eu…”


“Há horas em que o que existe é pouco; foi-lhe retirado o sumo completo e não adianta chamar o vento, pois já enfraquece na fonte; como um olhar dorido, como um canto restante”.


“Queira ler a mente de um músico, ela se prontifica: ouça a sua canção!”

Érico,
Por não sabermos onde tudo começa ou termina, há sempre um (re) começo.
Muita paz e luz para você.

sábado, 27 de março de 2010

Do Talento dos amigos II

Ema Bessar Viana é grande amigo. Semioticista e Linguista dotado de talento singular, admiro-o sobretudo pela profundidade com que discute conteúdos relacionados às disciplinas correspondentes. Ouvi-lo é sempre oportunidade para aprender. Seus textos são claramente marcados pela lida com o estrato linguístico, evidenciando uma espécie de formalismo a serviço da estética (ou vice-versa). Como bom semioticista que é, busca com equilibrado apuro linguístico o "Parecer do Sentido". No que tange aos seus poemas, é inequívoca a influência de João Cabral de Melo Neto.
A palavra rediviva (Ema Bessar Viana)


Quando zumbem e silvam e ciciam
Na substância amorfa dos ruídos
As palavras-som sulcam seus sentidos
Em sentidos outros que silenciam.

Do curso melódico e circular
As palavras-som à cadeia assomam
Como forma de sonidos que a cromam
Quando o fluxo-tempo se faz cortar.

Mas se a extensão da folha de papel
Torna-se o novo campo de batalha
E delas o sônico efeito falha,

Eis que sem converter-se em ouropel
E dando provas de desembaraço
As palavras-som exploram o espaço.

sábado, 20 de março de 2010

Do Talento dos amigos

Nesta postagem, bem como nas próximas (três), cedo o espaço para os textos de amigos e amigas que surpreendem pela vida, pela arte, pela linguagem...


A César o que é de César


(Vicência Jaguaribe)


Não tem jeito, a dor não morre.
Muito menos dorme.
Por mais que lute e me esforce
Ela está lá, de sentinela.
Sempre à espreita, sempre à espera.
Ao menor vacilo, à mínima brecha,
Ela não hesita. Mostra-se, entrega-se.

Já tentei entretê-la,
Procurei convencê-la.
Expus-lhe todas as razões
Falei-lhe da inutilidade das ilusões.
Mas ela, com um riso de ironia,
Acenou-me falando da tirania
Que governa as razões dos corações.

Ela, às vezes, se faz de surda,
Faz ouvido de mercador.
E me joga na enxurrada,
Sem o mínimo pudor.

Ri das minhas tentativas,
Zomba das minhas angústias.
Ironiza o meu luto.
Até me acusou de teimosia:
Quem já foi feliz um dia
Precisa pagar tributo.

- Não julgue que algo se constrói
Sem que se pague a César
O que é de César.
Disse-me com ar de quem corrói.

- E nos batem à porta,
Às horas mortas,
Aqueles que prescrevem:
Há sempre um César
A cobrar o que lhe devem.


Vicência:

É da dor que extraímos o travo da vida... que nos leva a outros sabores.

Vicência Jaguaribe é professora adjunta (aposentada) da Universidade Estadual do Ceará /UECE e Mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará.

sábado, 13 de março de 2010

A cor ou o som das cores?


As pinturas do artista plástico Leonid Afremov (nado em 1955, na Bielorrusia) são obras de arte executadas com espátula e tinta a óleo. Obras que encantam por suas cores vivas e por retratar paisagens belas da cidade, realçadas por cores fortes e brilhantes. Conheci as telas do pintor por meio do blog http://www.memóriasdaescrita.blogspot.com/, do meu amigo Érico Baymma. Comentei, na ocasião, o quanto me impressionaram e estesiaram.

Segue abaixo um poeminha-brincadeira sobre o tema em tela:

Pintar o poema.
pintura poética?
do pincel do poeta,
qual cor vale a pena?
apenas o som
da cor que faz festa.
(Ricardo Leite)















domingo, 7 de março de 2010

As coisas da alma ou a alma das coisas?


Conforme vocês notaram, em algumas postagens antigas, não consigo resistir à genialidade de Paul Valéry. Relendo en passant um de seus livros (A alma e a dança), deparo-me com estes dois belíssimos trechos:


[...] procuramos, no que é, um remédio ao que não é; e no que não é, um alívio para o que é. Ora o real, ora a ilusão nos recolhe; e a alma, em definitivo, não tem outros meios exceto o verdadeiro, que é sua arma – e a mentira, sua armadura.




[...] Sem dúvida, o objeto único e perpétuo da alma é bem aquilo que não existe: o que foi, e não é mais; o que será, e não é ainda; o que é possível, o que é impossível — são bem esses os assuntos da alma, mas nunca, nunca, aquilo que é.



sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Retorno

Depois de longas e merecidas férias, retomo as postagens no blog. Como devem lembrar os amigos, prosseguiríamos com as postagens sobre o tempo. Entretanto, recebi hoje um inesperado presente de Lívia, minha companheira: o livro Ensaios Fotográficos, de Manoel de Barros. O livro (que eu não conhecia) é repleto de belas imagens-metáforas e de aprumados jogos linguísticos. Como bem diz o autor, em relação à Língua Portuguesa, "Estudei-a com força para poder errá-la ao dente".
Afora o poema-dedicatória escolhido por Lívia, que guardo pra mim, este, transcrito abaixo, logo me chamou atenção:


COMPARAMENTO


"Os rios recebem, no seu percurso, pedaços de pau,
folhas secas, penas de urubu
E demais trombolhos.
Seria como o percurso de uma palavra antes de
chegar ao poema.
As palavras, na viagem para o poema, recebem
nossas torpezas, nossas demências, nossas vaidades.
E demais escorralhadas.
As palavras se sujam de nós na viagem.
Mas desembarcam no poema escorreitas: como que
filtradas.
E livres das tripas do nosso espírito."
(O quadro "Solidão vertical"que ilustra a postagem é de Martha Barros, filha do poeta).

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Tempo de Férias!



Peço desculpas pela escassez de postagens: estou de férias (mas, por incrível que pareça, extremamente atarefado). Deixo, no entanto, dois poemas de Drummond sobre o tempo, a fim de adimplir a agenda do blog:


AMOR E SEU TEMPO


Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe.

valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.



Os Ombros Suportam o Mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem
A vida apenas, sem mistificação.












segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

As aporias do tempo


O ano começa! Espero tê-los como visitantes (e como comentadores), em 2010. Pretendo, doravante, explorar textos atinentes não somente à Literatura, mas também à Música, à Semiótica Discursiva e à Estilística.

Começo com uma série de postagens sobre o Tempo. Por ora, deixo somente a reflexão sobrevinda da leitura do texto abaixo:

Preâmbulo às instruções para dar corda no relógio

Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra-pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você — eles não sabem, o terrível é que não sabem — dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrines das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.

Instruções para dar corda no relógio

Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.
(JÚLIO CORTÁZAR, Histórias de cronópios e de famas)