sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

As Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino


Calvino é lembrado como um dos grandes gênios da narrativa. Seu Livro "As cidades Invisíveis" é considerado por muitos críticos (inclusive pelo próprio Calvino) uma reflexão aprofundada da criação literária, uma espécie de mini-tratado da Literatura.

O livro consta de pequenos textos, que descrevem cidades imaginadas, ou melhor, relatadas pelo mercador de Veneza, Marco Polo, ao Imperador Kublai Khan: uma clara alusão ao clássico "As mil e uma noites". Dois detalhes merecem destaque: a) cada cidade recebe um nome de uma Mulher, b) cada cidade suscita um mundo que se constitui através dos sentidos (da audição, do odor, do paladar e de um olhar que não é o ver, mas o emergir na coisa); ou seja, cada texto porta uma revelação, mundos utópicos que são somente descortinados quando deitamos nosso olhar sobre ínfimos detalhes, à cata das ambigüidades e metáforas. A descrição espacial das cidades envolvidas nessa configuração imaginária é representativa da condição humana, das oscilações pelas quais o homem passa em seu constante embate com a realidade.



As cidades e o desejo
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Há duas maneiras de se alcançar Despina: de navio ou de camelo. A cidade se apresenta de forma diferente para quem chega por terra ou por mar.
O cameleiro que vê despontar no horizonte do planalto os pináculos dos arranha-céus, as antenas de radar, os sobressaltos das birutas brancas e vermelhas, a fumaça das chaminés, imagina um navio; sabe que é uma cidade, mas a imagina como uma embarcação que pode afastá-lo do deserto, um veleiro que esteja para zarpar, com o vento que enche as suas velas ainda não completamente soltas, ou um navio a vapor com a caldeira que vibra na carena de ferro, e imagina todos os portos, as mercadorias ultramarinas que os guindastes descarregam nos cais, as tabernas em que tripulações de diferentes bandeiras quebram garrafas na cabeça umas das outras, as janelas térreas iluminadas, cada uma com uma mulher que se penteia.
Na neblina costeira, o marinheiro distingue a forma da corcunda de um camelo, de uma sela bordada de franjas refulgentes entre duas corcundas malhadas que avançam balançando; sabe que é uma cidade, mas a imagina como um camelo de cuja albarda pendem odres e alforjes de fruta cristalizada, vinho de tâmaras, folhas de tabaco, e vê-se ao comando de uma longa caravana que o afasta do deserto do mar rumo a um oásis de água doce à sombra cerrada das palmeiras, rumo a palácios de espessas paredes caiadas, de pátios azulejados onde as bailarinas dançam descalças e movem os braços para dentro e para fora do véu.
Cada cidade recebe a forma do deserto a que se opõe; é assim que o cameleiro e o marinheiro vêem Despina, cidade de confim entre dois desertos.

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