domingo, 1 de fevereiro de 2009

O fantástico Borges e o Minotauro


Sem sombra de dúvida, Jorge Luis Borges é um dos grandes nomes da literatura mundial. Em sua escrita, precipitadamente rotulada de "fantástica", convergem não somente a erudição e o formalismo literário, mas também o tempo, os sonhos e a imaginação. Borges fazia questão de frisar que sempre fora um leitor voraz. A escrita seria apenas um exercício, uma consequência do hábito da leitura. Sou suspeito para falar de Borges: sua obra iniciou-me na Literatura e permanece encantadora e desafiadora para mim.

O conto dessa postagem releva um pouco dos "labirintos" mágicos da linguagem de Borges. Asterion é um dos nomes atribuídos ao Minotauro.




A Casa de Asterion
Jorge Luis Borges
Para Marta Mosquera Eastman

E a rainha deu à luz um
filho que se chamou Asterion.
APOLODORO: Biblioteca, III, I.

Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que castigarei no devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de casa, mas também é verdade que as suas portas (cujo número é infinito*) estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará aqui pompas femininas nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Por isso mesmo, encontrará uma casa como não há outra na face da terra. (Mentem os que declaram existir uma parecida no Egito.) Até meus detratores admitem que não há um só móvel na casa. Outra afirmação ridícula é que eu, Asterion, seja um prisioneiro. Repetirei que não há uma porta fechada, acrescentarei que não existe uma fechadura? Mesmo porque, num entardecer, pisei na rua; se voltei antes da noite, foi pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e iguais, como a mão aberta. O sol já se tinha posto mas o desvalido pranto de um menino e as preces rudes do povo disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, se prosternava; alguns se encarapitavam na estilóbata do templo das Tochas, outros juntavam pedras. Algum deles, creio, se ocultou no mar. Não é em vão que uma rainha foi minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo, ainda que o queira minha modéstia.
O fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escrita. As enfadonhas e triviais minúcias não encontram espaço em meu espírito, capacitado para o grande; jamais guardei a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. às vezes o deploro, porque as noites e os dias são longos.
Claro que não me faltam distrações. Como o carneiro que vai investir, corro pelas galerias de pedra até cair no chão, estonteado. Oculto-me à sombra duma cisterna ou à volta de um corredor e divirto-me com que me busquem. Há terraços donde me deixo cair, até ensangüentar-me. A qualquer hora posso fazer que estou dormindo, com os olhos cerrados e a respiração contida. (às vezes durmo realmente, às vezes já é outra a cor do dia quando abro os olhos.) Mas, de todos os brinquedos, o que prefiro é o do outro Asterion. Finjo que ele vem visitar-me e que eu lhe mostro a casa. Com grandes referências, lhe digo "Agora voltamos à encruzilhada anterior" ou "Agora desembocamos em outro pátio" ou "Bem dizia eu que te agradaria este pequeno canal" ou "Agora vais ver uma cisterna que se encheu de areia" ou "Já vais ver como o porão se bifurca". Às vezes me engano e rimo-nos os dois, amavelmente.
Não tenho pensado apenas nesses brinquedos; tenho também meditado sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, um pesebre; são catorze (são infinitos) os pesebres, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Todavia, de tanto andar por pátios com uma cisterna e com poeirentas galerias de pedra cinzenta, alcancei a rua e vi o templo das Tochas e o mar. Não entendi isso até uma visão noturna me revelar que também são catorze (infinitos) os mares e os templos. Tudo existe muitas vezes, catorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem existir uma só vez: em cima, o intrincado sol; embaixo, Asterion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já não me lembro.
A cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo o mal. Ouço seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para buscá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após outro caem sem que eu ensangüente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles, na hora da morte, profetizou que um dia vai chegar meu redentor. Desde então a solidão não me magoa, porque sei que meu redentor vive e que por fim me levantará do pó. Se meu ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. Oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? — me pergunto. Será um touro, ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? ou será como eu?
O sol da manhã rebrilhou na espada de bronze, já não restava qualquer vestígio de sangue.
— Acreditarás, Ariadne? — disse Teseu. — O minotauro apenas se defendeu.

* O original diz catorze, mas sobram motivos para inferir que, na boca de Asterion, esse adjetivo numeral valha por infinitos.

3 comentários:

  1. Oi, Ricardo! Que bom que tomaste essa iniciativa do blog! Vou vir aqui azucrinar de vez em quando.
    Quanto ao Borges, eu sempre tenho a impressão (certeza, na verdade) de que algo me escapou... mas isso não me desestimula, pelo contrário, me faz mais apaixonada pelo texto dele, que é um labirinto ele próprio.
    E em "O morto" e "O sul", ele fala diretamente à alma do gaúcho (não a mim, mas ao gaúcho de verdade, o que nem existe mais). Já leste?
    A propósito, te INICIASTE na literatura com Borges?????!!!!!!!

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  2. oi Alena, que bom ver uma msg sua no blog...

    Sim, tenho a obra completa de Borges, Conheço os contos que você mencionou. Não sou um Crítico de Borges(no sentido literário do termo), mas... há algum tempo, tenho lido e apreciado seus livros: também tenho a mesma sensação de incompletude, após a leitura de seus contos, contudo, não seria isso mais um artifício de sua literatura?
    Tenho planos de fazer algumas análises de seus contos e poemas, sob o prisma da Semiótica Discursiva.

    Agradeço, de antemão, visitas futuras, ok?

    Grande abraço
    Ricardo

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  3. Olá, Ricardo
    Legal d+ a idéia do blog, que pode ser um espaço rico de trocas e curiosidades de toda ordem.
    Tb eu, apesar de não conhecer Borges, gosto muito de sua enigmática escrita, que provoca em mim sensações como aquelas descritas por vc e pela Alena.
    Adoro "O Jardim de Veredas que se Bifurcam", sobretudo pelos prenúncios de alguns traços da hipertextualidade que vi lá.
    Abçs

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