domingo, 22 de novembro de 2009

Meus Eus e os Outros


Desculpem o sintetismo das últimas postagens. Motivos? Há de sobra, mas não merecem comentários. Prometo alongar a próxima postagem. Deixo abaixo dois poemas de Pessoa.



Tenho tanto sentimento

Que é freqüente persuadir-me

De que sou sentimental,

Mas reconheço, ao medir-me,

Que tudo isso é pensamento,

Que não senti afinal.


Temos, todos que vivemos,

Uma vida que é vivida

E outra vida que é pensada,

E a única vida que temos

É essa que é dividida

Entre a verdadeira e a errada.


Qual porém é a verdadeira

E qual errada, ninguém

Nos saberá explicar;

E vivemos de maneira

Que a vida que a gente tem

É a que tem que pensar.


Fernando Pessoa


Vivem em nós inúmeros;

Se penso ou sinto, ignoro

Quem é que pensa ou sente.

Sou somente o lugar

Onde se sente ou pensa.


Tenho mais almas que uma.

Há mais eus do que eu mesmo.

Existo todavia

Indiferente a todos.

Faço-os calar: eu falo.


Os impulsos cruzados

Do que sinto ou não sinto

Disputam em quem sou.

Ignoro-os.

Nada ditam

A quem me sei: eu 'screvo.


Fernando Pessoa (Ricardo Reis)

sábado, 14 de novembro de 2009

"O que você acha da poesia de Drummond?"


Para bom entendedor, estas palavras bastam:


Que noite mais comprida desde que nasci.

Viajando parado. O escuro me leva

sem nunca chegar. Sem pedir abença

como vou saber que não vou sozinho?

Que o mundo está vivo? Abença papai,

abença mamãe. Mas falta coragem

e peço pra dentro. Dentro não responde.


(Drummond, Noturno)



Confissão


É certo que me repito,

é certo que me refuto

e que, decidido, hesito

no entra-e-sai de um minuto.


É certo que irresoluto

entre o velho e o novo rito

atiro à cesta o absoluto

como inútil papelito.


É tão certo que me aperto

numa tenaz de mosquito

como é trinta vezes certo

que me oculto no meu grito.


Certo, certo, certo, certo

que mais sinto que reflito

as fábulas do deserto

do raciocínio infinito.


É tudo certo e prescrito

em nebuloso estatuto.

O homem, chamar-lhe mito

não passa de anacoluto.


(Carlos Drummond de Andrade, in 'As Impurezas do Branco')

sábado, 7 de novembro de 2009

Darcy Ribeiro em pedaços


Darcy conhecia bem o Brasil: suas origens, seu povo e sua política. Embora seja mais conhecido como o autor de O povo brasileiro, obra-referência nos estudos de Antropologia e Sociologia, demonstrou em outros escritos que também conhecia bem a língua do Brasil. Selecionei dois trechos dessa escrita dorida, sofrida, sem sossego, como a alma brasileira que ele tanto amava e conhecia.



"Eu, pobre de mim, estive tão ocupado em planos e fazimentos, com a vida me jogando daqui pr'ali, desatento de mim mesmo, que até do amor vivi, senão absente, quase sempre meio ausente. E o tempo a me acabar, inclemente. Agora me espanto de ver aquele menino antigo, aquele rapaz tímido, aquele homem feito, posto na idade provecta, respeitável. Só agora, tão tardiamente, sinto a dor dos buracos em mim, em que vivi ausente, desamado, enquanto o tempo me comia os idos. Inapelavelmente"(Testemunho, 1990, p. 25).



Não tenho nada,

Absolutamente nada, a dizer.

Poesia de palavra,

Já não me fala.


Est'outra sim.

Essa aqui sim.

Muda crispada

Dentro de mim.

(Eros e tanatos, 1997, p.151)