segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

As aporias do tempo


O ano começa! Espero tê-los como visitantes (e como comentadores), em 2010. Pretendo, doravante, explorar textos atinentes não somente à Literatura, mas também à Música, à Semiótica Discursiva e à Estilística.

Começo com uma série de postagens sobre o Tempo. Por ora, deixo somente a reflexão sobrevinda da leitura do texto abaixo:

Preâmbulo às instruções para dar corda no relógio

Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra-pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você — eles não sabem, o terrível é que não sabem — dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrines das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.

Instruções para dar corda no relógio

Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.
(JÚLIO CORTÁZAR, Histórias de cronópios e de famas)

3 comentários:

  1. Meu querido Ricardo,
    Legal o anúncio de adicionais para os temas abordados aqui. Seu blog é preferencial, referencial, inferencial...
    Grande texto de Júlio Cotazar. Inquietante? Inquietador? Preso ao pulso? Quantas prisões !!!
    Valeu, abração

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  2. 07.01.2010 Dr Ricardo, mestre e amigo: belo texto de JC!Kronos é para mortais; kairós é para o nosso Deus! Mas o que é mesmo a vida, senão uma neblina passageira...!!! Abraçao, PCSampaio

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  3. 21.01.2010 Dr Ricardo, mestre e amigo: tu devi ta muitu okupadu, hein machu vei!? Vamu poxtar maiz!? Abração! PCSampaio

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