terça-feira, 5 de maio de 2009

Ainda o "Manual de Pintura e Caligrafia" de Saramago

Havia já comentado em postagem anterior o domínio da língua Portuguesa por Saramago nesse grande romance, quando não era ainda consagrado com um Nobel de Literatura. Aqui, deixo mais dois belissímos trechos:

Provavelmente, nenhuma vida pode ser contada, porque a vida são páginas de livro sobrepostas ou camadas de tinta que abertas ou descascadas para leitura e visão logo se desfazem em poeira, logo apodrecem: falta-lhes a invisível força que as ligava, o seu próprio peso, a sua aglutinação, a sua continuidade. A vida são também minutos que não podem desligar-se uns dos outros, e o tempo será uma massa pastosa, densa e obscura, no interior da qual nadamos dificilmente, tendo por cima de nós uma claridade indecifrada que devagar se vai apagando, como um dia que, tendo amanhecido, à noite de que saiu regressasse (p. 91).



Particularmente me fascina o jogo geográfico que salta de Itálica (Espanha, perto de Sevilha) para Roma, de Roma para Londres, de Londres para York, de York para Genebra e de Genebra para o lugar onde nasceu Marguerite Vourcenar, que não sei nem vou saber. Porque ela própria, lançando palavras por cima de séculos e de distâncias menores que séculos, pôs Adriano a escrever: «O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que, pela primeira vez, se lança um olhar inteligente sobre si mesmo.» Onde assim nasceu Defoe? Onde assim nasceu Rousseau? Onde assim nasceu Yourcenar? Onde nasci eu, pintor, calígrafo, nado-morto enquanto não estiver decidido onde, quando e se um olhar inteligente foi lançado sobre mim mesmo? Falta saber se, desta maneira descoberto o lugar do nascimento, poderemos recuperar e continuar o olhar de entendimento ou, pelo contrário, nos perderemos em novas geografias (p.96).

Um comentário:

  1. Cada vez que eu leio Saramago, alguma coisa me salta aos olhos. Acho que vai ser assim mesmo que eu leia mil vezes... quem dera saber escrever (e ser) assim, revelando uma coisa a cada (re)leitura.. mas eu sou plana demais, como dizia Mariza Monte: eu nao sou difícil de ler.

    ResponderExcluir