quinta-feira, 24 de setembro de 2009

A ressaca de Machado


Nunca é demais expressar a admiração que nutro pela obra de Machado de Assis. Li vários de seus livros na adolescência, contudo, sancionados pela obrigação escolar, não encontrei maturidade devida para apreciá-los. É sempre um prazer indescritível pegar um de seus livros e, ao relê-lo, encontrar pérolas como a descrição dos olhos de Capitu por meio da metáfora da ressaca, em Dom Casmurro. São trechos imortais da literatura em Língua Portuguesa. Nunca ficarão gastos. Utilizei-o anteontem, em minha aula de Estilística do Português:

"Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me".

terça-feira, 15 de setembro de 2009

"Os cus de Judas" Lobo Antunes


Não li Antônio Lobo Antunes, escritor português, tido por muitos como o maior nome da literatura em língua portuguesa da atualidade, superando, inclusive, seu patrício José Saramago. Foi-me apresentado, para falar a verdade, recentemente, por Tércia Montenegro: escritora cearense renomada, minha colega na Universidade e fã declarada de Lobo Antunes.


Ocorre que, de uns tempos para cá, ouço e vejo amiúde seu nome, seja nas prazerosas conversas livrescas com Tércia, seja nas livrarias e sebos que costumo frequentar. Em decorrência, quem sabe, dessa conjugação de fatores, caiu-me à mão para simples folheamento um de seus livros: "Os cus de Judas". Sendo fã confesso de Saramago, admito que folheei o livro tentando pesar na balança o estilo dos dois escritores. Não sei se procedem as fofocas sobre uma possível rivalidade entre eles, mas o fato é que em poucas folheadas garimpei o trecho abaixo, que põe à mostra o texto refinado do escritor. Outras postagens virão.


“Já reparou que a esta hora da noite e a este nível do álcool o corpo se começa a emancipar de nós, a recusar-se a acender o cigarro, a segurar o copo numa incerteza tacteante, a vaguear dentro da roupa oscilações de gelatina? O encanto dos bares, não é, consiste em, a partir das duas da manhã, não ser a alma a libertar-se do seu invólucro terrestre e a seguir verticalmente para o céu no esvoaçar místico de cortinas brancas das mortes do missal, mas a carne que se livra, um pouco espantada, do espírito, e inicia uma dança pastosa de estátua de cera que se funde até terminar nas lágrimas de remorso da aurora, quando a primeira luz oblíqua nos revela, com implacabilidade radioscópica, o triste esqueleto da solidão sem remédio" (...p. 43).

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Saramago e a crônica


O livro A Bagagem do Viajante, de José Saramago, confirma a tese de que mesmo um genêro como a crônica, literariamente "insosso" e "mimeticamente urbano" (opinião particular em relação às crônicas contemporâneas em língua portuguesa), pode alçar-se à arte literária, basta que haja um grande escritor erigindo este arcabouço linguístico. Eis um excerto do livro:




"Almocei na fronteira do ar livre, rente a uma janela aberta. Era já o meio da tarde, e o restaurante estava deserto: o sol prendera-me na praia, envolvera-me de torpor, e entre o banho e a areia se tinham escoado as horas. É uma sensação agradável esta de ter o corpo um pouco áspero de sal, a antegozar o duche que nos espera em casa. E enquanto a costeleta de vitela não vem, vai-se beberricando o vinho fresco e estendendo a manteiga em bocadinhos de pão torrado, para enganar a fome subitamente acordada. Vida boa.


O momento é tão perfeito que podemos falar de coisas importantes sem que as vozes tenham de subir, e nenhum de nós pensa em ganhar no diálogo e ter mais razão do que a pode ter um comum ser humano que respeite a verdade. Além disso, é verão e, como eu disse, estamos na fronteira do ar livre. A aragem faz estremecer umas plantas cheirosas a que podemos chegar com os dedos e em volta das quais zumbem os insectos do tempo. Quebrada pela folhagem, há uma réstia de sol que se derrama pelas madeiras envernizadas da janela. Vida boa.


Temos a pele doirada e sorrimos muito. No interior do restaurante levanta-se uma grande labareda: é a cozinha que oferece os seus mistérios. Logo a seguir o empregado traz a costeleta, rescendente no seu molho natural, e nós infringimos as mais comezinhas regras da gastronomia mandando adiantar-se mais vinho branco. E ela vem, a garrafa, com a sua transpiração gelada e o truque mágico de embaciar os copos que a recebem. Ah, vida boa, vida boa.


Estamos agora calados, absorvidos na delicada operação de separar a carne do osso. Sob o gume da faca as fibras macias separam-se sem custo. O molho penetra nelas, aviva-lhes o sabor-oh, que bom é comer assim, depois de um ardente dia de praia, no restaurante de janelas abertas, com perfumes de flores e este cheiro maior do verão.


Voltamos a conversar, dizemos coisas vagas e lentas, inteligentes, numa plenitude de bem-aventurados. O sol, que desceu um pouco mais, desliza nos copos, acende fogos no vidro e dá ao vinho uma transparência de fonte viva. Sentimo-nos bem, com o restaurante só para nós, rodeados de madeiras fulvas e toalhas coloridas.


É nesta altura que se dá o eclipse. Uma sombra interpõe-se entre nós e o mundo exterior. O sol afasta-se da mesa violentamente, e a mão de um homem passa a moldura da janela, avança e fica imóvel por cima da mesa - de palma para cima. O gesto é simples e não traz palavras a acompanhá-lo. Apenas a mão estendida, à espera, pairando como uma ave morta sobre os restos do almoço.


Ninguém fala. A mão recolhe-se apertando a esmola, e, sem agradecer, o homem afasta-se. Entreolhamo-nos devagar, com os lábios deliberadamente cerrados. De repente, tudo sabe a inútil e a cobardia. Depois, com mil cautelas, pegamos no carvão em brasa. Se não estivéssemos a almoçar, teríamos dado a esmola? E que teria acontecido se a recusássemos? Sentiríamos depois mais remorsos que de costume? Ou houve simplesmente o medo de que a mão seca e escura descesse como um milhafre sobre a mesa e arrancasse a toalha, no meio do estilhaçar dos vidros e das louças, num interminável e definitivo terramoto?"

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Lavoura Arcaica de Raduan Nassar



Não é exagero afirmar que Lavoura Arcaica é uma obra-prima da literatura brasileira. Quem já leu sabe disso. De estrutura densa, capaz de penetrar as superfícies movediças de temáticas como religião, família, incesto, sem se deixar engolir pelo previsível, o livro torna-se primoroso sobretudo pelo modo como o autor utiliza a linguagem. Raduan Nassar garimpa a língua em busca da palavra mais certa, da expressão mais pura, do conceito mais distante do comum. Daí, a trama se construir através de metáforas e repetições (atenção especial à pontuação), cuja recorrência determina o andamento e a tensão da trama, resultando em um texto que mais encontra identidade no campo da poesia que no da prosa.




Embora o filme seja muito bom, a leitura do livro torna-se imprescindível. Vejam os trechos abaixo:


"Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu estava deitado no assoalho do meu quarto, numa velha pensão interiorana, quando meu irmão chegou pra me levar de volta;"

“Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! tinha textura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu perguntasse “para onde estamos indo?” -- não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rígido, desprovido de qualquer dúvida: “estamos indo sempre para casa”.