sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Saramago e a metáfora do sangue


Uma coisa que admiro em um escritor é o modo como constrói metáforas, este insólito fenômeno linguístico que irrompe do (no) texto, provocando uma surpresa no vivido. Assim, são as boas metáforas: ora impetuosas, sorrateiras e insolentes, ora brumosas, ternas e eternas. Como o Sangue.




por José Saramago


Todo o sangue tem a sua história. Corre sem descanso no interior labiríntico do corpo e não perde o rumo nem o sentido, enrubesce de súbito o rosto e empalidece-o fugindo dele, irrompe bruscamente de um rasgão da pele, torna-se capa protectora de uma ferida, encharca campos de batalha e lugares de tortura, transforma-se em rio sobre o asfalto de uma estrada. O sangue nos guia, o sangue nos levanta, com o sangue dormimos e com o sangue despertamos, com o sangue nos perdemos e salvamos, com o sangue vivemos, com o sangue morremos.

Torna-se leite e alimenta as crianças ao colo das mães, torna-se lágrima e chora sobre os assassinados, torna-se revolta e levanta um punho fechado e uma arma. O sangue serve-se dos olhos para ver, entender e julgar, serve-se das mãos para o trabalho e para o afago, serve-se dos pés para ir aonde o dever o mandou. O sangue é homem e é mulher, cobre-se de luto ou de festa, põe uma flor na cintura, e quando toma nomes que não são os seus é porque esses nomes pertencem a todos os que são do mesmo sangue. O sangue sabe muito, o sangue sabe o sangue que tem. Às vezes o sangue monta a cavalo e fuma cachimbo, às vezes olha com olhos secos porque a dor lhos secou, às vezes sorri com uma boca de longe e um sorriso de perto, às vezes esconde a cara mas deixa que a alma se mostre, às vezes implora a misericórdia de um muro mudo e cego, às vezes é um menino sangrando que vai levado em braços, às vezes desenha figuras vigilantes nas paredes das casas, às vezes é o olhar fixo dessas figuras, às vezes atam-no, às vezes desata-se, às vezes faz-se gigante para subir às muralhas, às vezes ferve, às vezes acalma-se, às vezes é como um incêndio que tudo abrasa, às vezes é uma luz quase suave, um suspiro, um sonho, um descansar a cabeça no ombro do sangue que está ao lado. Há sangues que até quando estão frios queimam. Esses sangues são eternos como a esperança.

sábado, 15 de agosto de 2009

Anotações de Valéry

Uma postagem rápida. Algumas citações do genial Paul Valéry:

“o que há de mais profundo no homem é a pele”.

“o poema - essa hesitação prolongada entre o som e o sentido”.


"No poeta:
O ouvido fala,
A boca escuta;
É a inteligência, o despertar, que dá à luz o poema;
É o sono que vê com clareza;
A imagem e o fantasma é que enxergam,
A falta e a lacuna é que criam."

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Em recuperação

Semana difícil esta que passou: perdi meu avô (com quem aprendi a valorizar as coisas simples da v ida) e tive que me submeter a uma cirurgia um pouco delicada. Mas... hoje a vida retoma parcialmente seu fluxo normal. Daí, a escassez e concisão das postagens durante o período que passou. Já dizia Sénega:

"Nisto erramos: em ver a morte à nossa frente, como um acontecimento futuro, enquanto grande parte dela já ficou para trás. Cada hora do nosso passado pertence à morte."

Deixo o poema do "Poetinha" como reflexão:

Poética

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.

Vinícius de Moraes

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O delírio de Rosa

Delírio /Guimarães Rosa (extraído do livro de poemas "Magma")

No parque morno, um perfumista oculto
ordenha heliotrópios...
Deixa aberta a janela...

Minhas mãos sabem de cor o teu corpo,
e a alcova é morna...
Apaguemos a luz...

Não sentes na tua boca
um gosto de papoulas?...

Passa o lenço de seda de tuas mãos
sobre minha fronte,
e não me digas nada:
a febre está, baixinho, ao meu ouvido,
falando de ti....